Com informações da Agência Fapesp - 10/11/2022
Gelo superiônico
O gelo comum - esse produzido no seu congelador - não é a única fase cristalina da água: Há mais de 20 diferentes fases sólidas possíveis da água.
Uma delas, chamada de gelo superiônico ou gelo XVIII, atrai grande interesse dos cientistas porque, entre outros motivos, é ele que compõe grande parte dos planetas conhecidos como gigantes de gelo, como Netuno e Urano - também se acredita que o núcleo da Terra seja superiônico.
Na fase cristalina superiônica, a água perde sua identidade molecular (H2O), com os íons negativos de oxigênio (O2-) dispondo-se na forma de uma rede cristalina extensa, e os prótons (núcleos de hidrogênio, ou H+) formando um fluido que circula por essa rede.
"A situação é análoga à de um metal condutor, como o cobre, com a grande diferença de que, no metal, são os íons positivos que formam a rede cristalina, enquanto os elétrons, portadores da carga elétrica negativa, ficam relativamente soltos, circulando através da rede," explica o pesquisador Maurice de Koning, da Unicamp.
Mas não é fácil estudar essa fase da água porque ela só se forma em condições extremas, que ainda não haviam sido claramente delineadas. Foi justamente isso que Koning e seus colegas fizeram agora.
Experimentos e simulações
Há alguns anos, outra equipe conseguiu produzir uma minúscula quantidade de gelo XVIII, mas ele se manteve estável por apenas um nanossegundo, antes de se desestruturar.
Isso foi conseguido por meio de ondas de choque criadas por laser e lançadas sobre uma amostra de água. Seis feixes de laser de alta potência foram disparados em uma sequência temporal precisa para comprimir, por meio de ondas de choque, uma fina camada de água encapsulada entre as duas superfícies de uma bigorna diamante.
As ondas de choque reverberaram entre os dois diamantes rígidos, proporcionando uma compressão homogênea da água, essencialmente reproduzindo as condições encontradas no núcleo dos planetas, o que resultou na fase cristalina superiônica - ao menos por um bilionésimo de segundo.
"No estudo realizado agora, não fizemos um experimento físico real, mas usamos simulação computacional para investigar as propriedades mecânicas do gelo XVIII e descobrir como suas deformações influenciam os comportamentos observados nos planetas Netuno e Urano," contextualizou Koning.
Do gelo ao magnetismo dos planetas
O pesquisador conta que o estudo se valeu da Teoria do Funcional da Densidade, um método derivado da mecânica quântica e usado em física dos sólidos para resolver estruturas cristalinas complexas. "Investigamos, primeiramente, o comportamento mecânico de uma fase sem defeitos, que não existe no mundo real. Depois, acrescentamos defeitos para saber que tipos de deformações macroscópicas resultam disso," explicou o pesquisador.
Os resultados mostraram que o gelo superiônico se forma sob temperaturas extremamente elevadas, no patamar de 4.700 °C, e pressões altíssimas, da ordem de 340 gigapascais, o que é mais de 3,3 milhões de vezes maior do que o da pressão atmosférica padrão da Terra. Por isso, é impossível ter gelo superiônico estável no ambiente terrestre.
Em Netuno e Urano, porém, a pressão resultante dos enormes campos gravitacionais desses planetas gigantes possibilita a existência de grandes quantidades de gelo XVIII nas camadas internas mais próximas dos respectivos núcleos.
E esse gelo superiônico pode explicar aspectos de grande escala nos gigantes gasosos.
"A eletricidade conduzida pelos prótons através das redes cristalinas de oxigênios está intimamente ligada à questão de por que os eixos dos campos magnéticos desses planetas não coincidem com seus eixos de rotação. Eles se apresentam, de fato, bastante deslocados," afirmou Koning.
Medições feitas pela sonda espacial Voyager 2 mostram que os eixos dos campos magnéticos de Netuno e Urano formam ângulos de 47 graus e de 59 graus com os respectivos eixos de rotação. Este estudo mostra que, em vez de isto se dever a eventos astrofísicos nos primórdios do Sistema Solar, a explicação pode estar no gelo superiônico nas profundezas dos dois planetas.